Contexto histórico
A Bíblia Poliglota Complutense foi concebida durante o Renascimento, em um período marcado pelo ressurgimento do interesse por textos clássicos e pela erudição humanista. Nesse contexto, havia uma busca intensa por retornar às fontes originais das Escrituras, a fim de obter maior precisão na compreensão dos textos bíblicos. O projeto surgiu sob o reinado de Isabel I de Castela e Fernando II de Aragão, os Reis Católicos, como parte de um esforço mais amplo para fortalecer o papel da Espanha como centro do saber cristão e da ortodoxia religiosa, em face dos desafios da Reforma que começava a emergir na Europa.
Ano de publicação
A Bíblia Poliglota Complutense foi impressa entre os anos de 1514 e 1517, embora sua publicação oficial tenha ocorrido apenas em 1520, após a obtenção da aprovação papal. Trata-se, portanto, da primeira edição impressa de uma Bíblia multilíngue completa, anterior à famosa Bíblia Poliglota de Antuérpia (ou de Plantin), que só seria publicada décadas depois.
Autor
O responsável direto pelo projeto foi o cardeal Francisco Jiménez de Cisneros, arcebispo de Toledo e um dos principais conselheiros dos Reis Católicos. Ele foi o idealizador, patrono e financiador da obra. Embora não tenha escrito a Bíblia, Cisneros reuniu uma equipe de estudiosos altamente qualificados, entre eles, especialistas em hebraico, grego e latim, como Alfonso de Zamora, Alfonso de Alcalá e Demetrio Ducas, todos professores da recém-fundada Universidade de Alcalá (Complutense).
Criação
A obra foi iniciada em 1502, com o objetivo de criar uma edição crítica das Escrituras baseada nos textos originais em hebraico, grego e latim. Os estudiosos trabalharam com manuscritos hebraicos e gregos cuidadosamente selecionados, além da Vulgata latina, a versão oficial da Igreja Católica. O trabalho levou mais de uma década para ser concluído, exigindo precisão linguística, colação de manuscritos e decisões filológicas complexas.
Publicação
Apesar de estar pronta em 1517, a publicação só foi autorizada em 1520 pelo Papa Leão X. A impressão foi realizada na própria Universidade de Alcalá, com equipamentos modernos para a época. Foram produzidos cerca de 600 exemplares, muitos dos quais foram distribuídos entre universidades, monastérios e bibliotecas eclesiásticas. A publicação ocorreu em seis volumes, com textos dispostos em colunas paralelas para facilitar a comparação entre as línguas.
Características distintas
A Bíblia Poliglota Complutense apresenta os textos bíblicos em três línguas principais: hebraico, grego e latim. O Antigo Testamento inclui o texto hebraico, a Septuaginta grega e a Vulgata latina, organizados em colunas paralelas. Acima do texto hebraico, foi colocado o Targum aramaico com tradução latina. O Novo Testamento aparece com o texto grego e a Vulgata. A obra inclui prefácios e introduções críticas que explicam os critérios textuais e linguísticos adotados. Uma das principais inovações foi a tentativa de restaurar o texto original das Escrituras, usando os melhores recursos filológicos disponíveis.
Linguagem e estilo
A linguagem utilizada nos textos é formal, acadêmica e precisa. Os estudiosos responsáveis tomaram cuidado em manter a fidelidade aos manuscritos originais, adotando uma abordagem crítica e erudita. As traduções latinas foram cuidadosamente revistas à luz dos textos hebraicos e gregos. O estilo editorial reflete o espírito humanista e filológico do Renascimento, com forte ênfase na clareza, na precisão textual e na organização gráfica rigorosa.
Importância e influência
A Bíblia Poliglota Complutense representa um marco na história da crítica textual bíblica e dos estudos bíblicos. Foi a primeira vez que se tentou, de forma sistemática, apresentar os textos bíblicos em suas línguas originais com fins comparativos e críticos. Influenciou diretamente as futuras edições poliglotas e contribuiu para o desenvolvimento dos estudos orientais e bíblicos na Europa. Embora inicialmente pouco difundida devido à tiragem limitada e à complexidade do conteúdo, seu prestígio cresceu com o tempo, sendo considerada uma das maiores realizações editoriais do Renascimento.
Relação com outras traduções
A Poliglota Complutense antecede e inspira outras bíblias multilíngues, como a Bíblia Poliglota de Antuérpia (1568–1572) e a Bíblia Poliglota de Paris (1645–1657). Diferente da Vulgata latina, que era uma tradução única, a Poliglota permitia aos estudiosos confrontar os textos originais. A comparação entre o hebraico, o grego e o latim influenciou reformas posteriores da Vulgata e abriu caminho para traduções mais fiéis nas línguas vernáculas. Seu impacto foi tanto acadêmico quanto teológico.
Edições e legados
A edição original de seis volumes é rara e extremamente valorizada por bibliotecas e colecionadores. Exemplares estão preservados em instituições como a Biblioteca Nacional da Espanha. Apesar de não haver reimpressões imediatas, seu modelo foi replicado em futuras bíblias críticas. Além disso, a obra consolidou a Universidade de Alcalá como centro de estudos bíblicos e orientais. Seu legado permanece como símbolo do esforço de conciliação entre fé e razão, tradição e crítica.
Conclusão
A Bíblia Poliglota Complutense é uma das obras mais ambiciosas e eruditas do Renascimento europeu. Fruto do espírito humanista, ela marca o início da crítica textual moderna aplicada às Escrituras, promovendo uma leitura comparativa dos textos bíblicos nas línguas originais. Concebida com rigor acadêmico e profundo zelo religioso, ela simboliza o ideal de retornar às fontes (ad fontes) e influenciou decisivamente os rumos dos estudos bíblicos e da edição de textos sagrados na Europa.
Referência
SÁEZ, Santiago. La Biblia Políglota Complutense: Edición y contexto histórico. Madrid: Consejo Superior de Investigaciones Científicas, 2002.
BROWNING, W.R.F. A Dictionary of the Bible. Oxford: Oxford University Press, 2009.
MARTÍNEZ, José Luis. La Biblia Políglota de Alcalá: Historia y significado. Alcalá de Henares: Universidad de Alcalá, 1997.
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